As diferentes identidades surdas
Segundo PERLIN (2013, p. 62), existem várias divisões em que os sujeitos surdos podem ser identificados. Ela cita algumas dessas categorias para mostrar a heterogeneidade das identidades surdas. Abaixo seguem as características de cada uma delas classificadas pela autora:
I. Identidades surdas (identidade política):
Trata-se da identidade que é intensamente marcada por uma política surda. Para PERLIN (2013, p. 63), “estão presentes no grupo pelo qual entram os surdos que fazem uso com experiência visual propriamente dita.” Logo, entende-se que são pessoas que transpassam suas experiências, suas culturas, suas formas diferentes apenas por meio da língua de sinais. Aceitando somente esta estrutura. Possuem, entre si, uma gama de interesses em comum, assim como, associações, órgãos representativos, compartilhando todas as dificuldades que se sucedem ao longo caminho da busca pela interação social. Aceitam-se como surdos sem qualquer resistência, não se inibem em assumir o comportamento de pessoas surdas.
Para ressaltar este tipo de identidade, a autora cita o depoimento de G. de 20 anos:
Se há festas de família, é natural o surdo procurar o semelhante surdo. Se na festa não há um semelhante surdo, a tendência é fugir para ir ao encontro do surdo onde quer que ele esteja. Somos assim. Algo atrai por ser melhor. Juntos é melhor. A maioria surda sempre está junto. Estar com os amigos surdos é sentir que se tem este parentesco. É um parentesco virtual. Isso porque chegamos na profundidade de nossas relações de semelhantes. Uma semelhança forte que nos mantém vivos, unidos. Se acontecer visita entre nós, ficamos falando horas de tudo que é possível. Na família o ouvinte intervém, geralmente o pai, a mãe, os irmãos. Ficam ansiosos em relação ao tempo gasto nessa forma de comunicação. Nossa comunicação é uma forma de transmitir fatos, de compreendê-los, de valorizá-los na semelhança, no descompasso.
De acordo com PERLIN (2013, P. 64) consiste em mais um tipo de identidade. São sujeitos que nasceram ouvintes e com o passar do tempo se tornaram surdos por algum motivo. Segundo WRINGLEY (1996, p.14, apud PERLIN, 2013, p. 64): “conhecem uma forma ontológica de existir através da experiência da audição”. São surdos que, na maioria das vezes, possuem o conhecimento tanto da língua oral, quanto da língua de sinais e se
comunicam, às vezes, pelas duas.
A autora cita sua própria experiência para ressaltar esse tipo de identidade:
Isso não é tão fácil de ser entendido, surge a implicação entre o ser surdo, depender dos sinais, e o pensar em português, coisas bem diferentes que sempre estarão em choque. Assim, você sente que perdeu aquela parte de todos os ouvintes e você tem pelo meio a parte surda. Você não é um, você é duas metades.
III. Identidade surda de transição:
Acontece quando o sujeito surdo, por algum motivo, não tem nenhum contato com a identidade surda. A transição é marcada quando o surdo se desvencilha dos hábitos ouvintes e adota a identidade surda que possui um aspecto mais visual. PERLIN (2013, P. 64) relata que “no momento em que esses surdos conseguem contato com a comunidade surda, a situação muda e eles passam pela “desounvintização” da representação da identidade”.
IV. Identidade surda incompleta:
É quando o surdo nega a sua própria identidade apenas para se socializar no ambiente dos ouvintes. Possui certa habilidade de articular as palavras, na maioria das vezes usa aparelho auditivo e recusa o uso da língua de sinais. PERLIN (2013, P. 64-65) a descreve quando existe uma forte pretensão da comunidade ouvintista de impor aos surdos a reprodução de sua identidade visando, nessa atitude, uma maneira de manter o domínio, com atitudes que buscam conservar uma relação de poder.
Tenho uma amiga que não procuro muito. Tem alguns restos auditivos. Usa aparelho de audição. Ela não se aceita como surda. Ela não quer estar no mundo dos surdos e faz de tudo para ser oralizada. Tem poucos amigos. Quando ela foi para o ensino médio não gostava de minhas Libras, me pedia para falar, o que jamais consenti. Notei que há nos primeiros dias fez amizade com uma colega. Elas ficaram juntas e conversaram, mas isso não durou muito, pois a colega ouvinte deixou-a por outra. Dessa vez sentiu-se desanimada com a experiência. A colega não entendia muito bem a fala e ela não conseguia compreender bem a colega. Na verdade minha amiga não tem boa voz, é uma voz muito mal articulada porque a colega ouve mal. Ela também não conhece sinais. A sua vida parece oscilar como um pêndulo entre surdos e ouvintes, não consegue ter amigos.
V. Identidades surdas flutuantes¹:
Elas estão presentes em surdos que possuem dificuldade de identificação em uma comunidade de maneira definida seja ela ouvintista ou surda. PERLIN (2013, P. 66) relata que:
São muitos casos e muitas histórias de surdos profissionalizados que vivem as identidades flutuantes, pois não conseguiram estar a serviço da comunidade ouvinte por falta da comunicação e nem a serviço da comunidade surda por falta da língua de sinais.Abaixo, veremos o depoimento de J. 30 anos que mostra a questão da diferença na família.
Quando acabei a quinta série fui para uma escola de ouvintes. Não havia nada que pudesse fazer. Meus pais moravam no interior e eu precisava continuar a estudar. Na escola os ouvintes vinham até mim e falam. Eu sentia apenas raiva e vergonha. Tudo era ditado pelos professores. Os colegas escreviam, nada ia ao quadro. Como escrever? Eu como surda aquentava minha diferença. Chegando em casa chorava todos os dias, chorava desabafando minha raiva. Por que eu era surda? O que tinha que eu não era como os outros? Eu dava o máximo de mim. Mamãe me acalmava e eu percebia que às vezes chorava junto. Vezes houve em que ela ia à escola e falava para os professores ficarem de frente, para mim poder ler os lábios, usar o quadro, providenciava um colega, para sentar junto para que eu pudesse copiar tudo. Havia fofocas e risinhos. Eu precisava de paciência, achava terrível. Mamãe sempre incentivando, apesar de tudo. Eu queria largar, sempre, queria largar a escola... De meu ponto de vista a escola de ouvintes é ruim para fazer amizades, para estabelecer relação. Um surdo com ouvintes é duro, difícil, sofrido. Muito eu chorei. Falava a minha mãe por que eu sou surda? Só Deus sabe. Finalmente retornei a escola de surdos.
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¹ Flutuante é um termo proposto por McLaren (1997ª, p.137) que, comentando em relação a branquidade, diz: a habilidade do sujeito falante de mover-se para dentro da posição dele sem parecer ter deixado a posição do eu ou tu (os quais são significantes vazios ou ‘flutuantes’ que não possuem referente fora da situação imediata)”.
Vistos esses tipos de identidades surdas, segundo as experiências coletadas junto à comunidade surda pela da autora Gladis Perlin, é possível compreender como o sujeito surdo gostaria de ser visto, pois cada categoria dos diferentes tipos das identidades surdas possui uma característica específica. Infringir isso seria negar a autonomia do surdo sobre ele mesmo.
A temática abordada pela autora sugere que a comunidade ouvintista, que em sua maioria somente visa olhar para a comunidade surda sobre um aspecto dominante, deve se livrar de estereótipos como conceitos arcaicos, preestabelecidos de forma errônea que só servem para marginalizar o sujeito surdo. E, diante disso, procurar uma aproximação à comunidade surda para entender seus percalços e ajudar no desenvolvimento de questões ligadas a construção de uma identidade cultural e do senso de justiça, a começar por conciliar esses pensamentos com as atitudes por meio de uma condição solidária, isto é, sem se preocupar em receber algo em troca.
Por: Aurélio Couto
Referência: PERLIN, Gladis T. T. Identidades surdas. In: SKLIAR, C. B. (Org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. 6. ed. Porto Alegre: Mediação, 2013. p. 62-66.
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